Grandes coisas, José

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Ouvir ao som de Caetano Veloso – Triste Bahia

José Urvenal sempre volta pra casa de madrugada, lá pelas 2 e tantas, quando eu tô desligando as coisas e deitando pra dormir. Com seus 34 anos e olhos que não enxergam muito bem devido a miopia que não pode ser melhorada, sempre passa pedalando rápido (eu imagino que seja rápido porque em instantes sua voz vai ficando cada vez mais distante) cantando uma música gospel, sempre o mesmo trecho, mais ou menos assim:

“Grandes coisas vão surgir, grandes coisas vão acontecer nesse lugaaaaaaaaaaar” (e na repetição dos ‘aaaaaaaaa’ ele põem pra fora com toda a força o ar dos seus pulmões, não se importando que 99% da rua já deve estar dormindo a essa hora). José Urvenal é tipo aquele cachorro do vizinho que a gente sempre escuta latir em momentos que tudo que menos queremos é ouvir algum barulho, e o latido seria irritante se não estivéssemos acostumado com ele.

Nos primeiros dias em que me mudei pra essa cidade, estranhava a cantoria de madrugada e até cogitei ir conversar com o José Urvenal de dia, explicar pra ele que eu-preciso-acordar-cedo-no-outro-dia-e-a-cantoria-me-desperta-do-milésimo-sono–e-eu-já-tô-detestando-a-ideia-de-ter-largado-São-Paulo-e-vir-morar-nesse-fim-de-mundo-será-que-você-por-favor-poderia-contribuir-com-o-meu-não-suicídio-diário???? Mas desisti quando o meu pai me contou onde ele mora.

José Urvenal mora onde, literalmente, Judas perdeu as botas.

É numa dessas casinhas de pau-a-pique, que eu esperava ver em qualquer lugar do mundo, menos onde já tem energia elétrica, saneamento básico, internet, supermercado, meninas de 13 anos voltando pra casa sozinhas depois da balada. Um dia, passeando de carro, meu pai me levou lá por curiosidade, e desde então nunca reclamei de suas cantorias.

Mas, depois descobri eu não era a única que me incomodava com elas.

Segunda de manhã eu ligo a TV na hora do almoço e vejo a notícia que José Urvenal foi encontrado morto num terreno abandonado ao lado de uma escola pública daqui. Motivo? Ninguém sabe. Até onde se tem notícia, José não tinha inimigos, mas amigos também não tinha. Não tinha família, não tinha cachorro, morava tão mal que não tinha vizinhos. Só tinha os clientes de sempre que compravam seus legumes e verduras no centro da cidade, mas ele era conhecido por todos como o-cara-que-vende-verduras-no-centro-da-cidade. José Urvenal era analfabeto, perdeu a mãe quando era adolescente e o pai, nunca conheceu. Aparentemente, morreu porque era só mais uma matéria sem muita importância no espaço. Morreu sem deixar seu legado, suas histórias, o amor que tinha no peito, se é que tinha amor. Ninguém vai sentir saudade dele. Vão comentar por duas ou três semanas, vão dizer que foi covardia, mas quem vai querer pausar a rotina, ter aquele momento desconfortável na hora do almoço corrido com a família e fazer justiça por José Urvenal? Ou então, depois das 18, quem é que vai procurar um advogado mais eficiente pra estudar o caso? Quem é que vai pagar?

É.

Ninguém.

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Uma resposta para “Grandes coisas, José

  1. Via “Cem anos de solidão”, Gabriel Garcia Marquez me sensibilizou quanto ao entendimento de luto. Entendimento sem qualquer indício de fria racionalidade. Pelo contrário. E falo tudo isto não porque somente ou tardiamente aprendi solenidade, respeito, dignidade do luto perante a perda incontornável e irreparável como notícia do distante ou do juntamente próximo. Enfim… Enfim… Falo tudo isto porque, através do seu texto, Tay, da sensibilidade tão suavemente – e, daí, tão fortemente – implícita e expressa nele – assim o percebo -, ativou-se em mim algo do luto. Por enquanto, não tenho o que fazer em nome da honra do Seu José Urvenal nem o conheci de vista ou de diálogo/s. Contudo, neste momento está em mim o lamento pela sua falta e pela condição mais ou menos obscura que o fez desaparecer, aparecendo daquela maneira, como você a soube. E não conhecendo Seu José Urvenal como indivíduo específico, noto que, exatamente agora, esparrama-se de mim o sentimento de respeito lamentoso ou lamento respeitoso em solidariedade ou compaixão ou piedade – não é nenhuma destas 3 palavras a que me falta agora (talvez, misericórdia) – pelos Seus Josés Urvenais, seres humanos de outrora e alhures que passaram por isto. Enfim. Lembro-me de duas músicas de uma colega, a Vanessa Croge, intituladas “O labirinto” e “Só mais um”. Ela é socióloga e poetisa… Sabe muito bem o que e como fala. Em honra também ao Seus Josés Urvenais, sinto e penso que também para eles foi escrito o poema XVI, do John Donne, no seu “Meditações” (“Nenhum homem é uma ilha, isolado em si mesmo…”). Já lhe parabenizei uma vez. Esta é outra, e sei que haverá outras, conforme voltar visitar suas postagens, se você me permitir. Parabéns por como seu respeito dialoga bem com o respeito alheio.

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